domingo, 29 de março de 2009

Cada pedaço

Pinga minha vida como escorre a água da chuva, ninguém sabe ao certo pra onde vai, ou o que se tornará, como o leite derramado e embebido pelo chão, vai meus pedaços a cada volta do relógio.

Faço e refaço minha sinfonia, instrumentos e instrumentistas se misturam. Cada um vai tocando em sua melodia, de forma irregular, o espetáculo desafinado de estar vivendo em mim. Desafinado mesmo é o meu compasso que ainda tenta manter o passo em meus pés.

Sinto tudo se esvaindo, pedaço por pedaço, vestígio por vestígio, só não me passa essa vertigem de querer saber além. Perceber que me jogar já não é suficiente me faz perder o pouco chão que tenho, se é que tenho chão. Na imensidão desse céu, de concreto, é só meu coração que pulsa, ainda pulsa a flutuar.

Gira o Sol acima da minha cabeça, correnteza que vai a me levar, pedaço por pedaço, vestígio por vestígio, tudo para vê se finjo que a moldura está completa. Para ver se existo cabal nalguma pintura, para ver se pinto minhas partes incompletas.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Nossa imensidão

Eu fico olhando esse mar, a correnteza converge tudo em saudade e a areia molhada das tuas lágrimas absorve meus pés descalços. Minhas mãos sempre vazias portando apenas no meu dedo o peso de um anel. Confiro doze conchas no chão, é o dia certo para estar ali.
Tento mergulhar e cada vez mais fundo, encontrar lá no fundo do mar algum esconderijo em que a tua ausência não me alcance, romper uma onda e submergir sereia, olhar teus olhos infantis em qualquer gota de sal, de água, de chuva. Poder tocar o mar, mergulhar o céu. Nos teus braços me encostar e, enfim, renascer.
Hoje eu quero chuva, Sol já é tua pele contra a minha, queimando e ardendo, luz do querer, de ainda te querer, a cada dia e noite, como a lua nua em versos.
E se eu sou a lua, enquanto o calor do teu sangue me mantém, teus olhos são estrelas que me cercam, guiam, iluminam e se por vezes morrem, continuam a olhar por mim infinitamente e incansavelmente até que o amanhecer e a noite se encontrem no horizonte. Lá que teu corpo inflama a minha paz. Lá... onde o sol, a lua e o mar viram uma só imensidão.

domingo, 8 de março de 2009

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada


Vinicius de Moraes

sábado, 7 de março de 2009

O reflexo

Escrevo esses versos medíocre e egoístas, que sequer versos são, para descarregar uma alma cheia de escarro. E em meio à nebulosidade eu tento ver a pessoa atrás do espelho. Paro, fito, a fumaça do cigarro faz um "s" e ela ali, imóvel, a me olhar enquanto escrevo. Quem será aquela criatura que sorri? Tento alcançá-la chegando mais perto, mas por algum efeito transcendente, ela se afasta, e, à medida que me afasto, ela se aproxima. Quanto mais tento enxergar seu rosto, mais nebuloso fica entre nós. A fumaça embaça minha visão, só enxergo o cálice entre meus dedos, suas mãos, vazias.
Essa sombra que me segue, persegue meus passos e juízo, na verdade já nem tenho certeza se ela me acompanha ou se eu que a procuro, mas em cada lugar a vejo, em cada gesto, e em cada reflexo fico sempre a me indagar sobre o que é real, ou quem.
Eu, matéria, corpo e transpiração só posso enlouquecer. Como duvidar de minha própria existência? Mas as pessoas da sala não me reconhecem. Eu sou o reflexo que tinge a prataria da casa, mas será que o reflexo sou eu?
Tento encontrá-la, me encontrar, encontrá-la em mim, me enxergar nos reflexos até que tudo vire uma coisa só. Poder tocar em seus dedos e adentrar esse espelho, ou simplesmente tirá-la de lá sem saber ao certo o que será de mim.
Vou escrevendo esses versos sem rimas nem palavras até que eu consiga tocar o espelho e consiga fazê-los enxergar o que ninguém consegue, até que o espelho reflita minhas rugas e calos ou a tinta da caneta seque.
Vou escrevendo meus versos até que eu consiga descobrir, enfim, se refletir é ser ou se eu posso ser sem refletir.